segunda-feira

Operações do desencanto

Ademir Assunção, poeta, faz parte de uma geração que engendrou na cultura brasileira uma maior popularização e inclusão de escritores tidos como malditos ao nosso pensamento literário; estava em Londrina quando despontaram os compositores Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção – integrantes do que ficou conhecido posteriormente como Lira Paulistana –, é da mesma geração do dramaturgo Mario Bortolotto, e do poeta Rodrigo Garcia Lopes – tradutor da última edição de As folhas de relva [2005] no Brasil. Assunção conhece e é produtor de um descolamento crítico em relação à Modernidade, um desencanto que não aponta saídas, mas não para de andar nem de correr riscos:

o caos ecoa nas ruínas,
escuras esquinas do inferno, pompeia,
são paulo, istambul, atenas, a moda
do outono é a decadência do inverno,
dizem que os profetas só predizem
desatinos, pássaros tenebrosos nublam
presságios, o cacto rubro desconhece
a flor do destino, é no silêncio
que os banqueiros multiplicam seus
ágios, quebram-se dentes, racham
mandíbulas, ossos estalam nas tumbas,
o vento varre os edifícios da cidade,
baleias destroçam submarinos, bruxos
eslavos rasuram signos mágicos, otários
neochics imitam macacos, cadelas
burguesas tomam no rabo, hackers
detonam a musa da TV a cabo, nada faz
sentido nessa névoa de bosta, lama
espessa subindo dos pés ao pescoço
[ASSUNÇÃO, 2012, p. 15-16]

Ganhador do Prêmio Jabuti de 2013, o livro de Ademir Assunção, A voz do ventríloquo é um misto de desesperanças e de experiências violentas e aterradoras ou no mínimo caçoadoras dos rumos que o mundo tomou. No fragmento acima, do poema “O triunfo do General Mandíbula”, podemos enumerar até o quarto verso as palavras caos, ruínas, escuras, inferno, Pompeia, decadência e inverno, todas com o sentido que têm de fato, um quadro de desmoronamento total do real. No quinto e sexto verso, os profetas e os pássaros – geralmente usados como sinônimos de poetas, no sentido daqueles que veem o que virá, daqueles que captam com suas antenas o devir – não veem nada, ao contrário os primeiros têm presságios inúteis ou em outro sentido, seus presságios, desatinos, são inconcebíveis e terríveis; os pássaros, em vez de cantar a beleza ou contar segredos futuros, atrapalham os que tentam enxergar o futuro, nublam as visões dos que a enxergar se prestam. Nos versos sete e oito, o cacto, símbolo da adversidade e da vida precária, também não pode conceber seu quinhão de delicadeza, sua flor, que além do mais é seu órgão reprodutivo, além se manter espinhoso, rubro, está fadado a não mais polinizar e sucumbir sem vestígios. No 13º verso a inteligência científico militar é assolada pela natureza, são as baleias que intentam contra os submarinos, e vencem. Os neochics – termo geralmente associado a um segmento de classe média alta de hábitos alternativos e consumidor de cultura – que poderiam ser leitores de Assunção em um país de tão poucos leitores, são ridicularizados. Não há vencedor, o entretenimento, descrito acima como vencedor da disputa pela cultura, aqui também tem suas musas de TV devassadas por hackers. Segundo Rafael Zacca, poeta e crítico carioca, para Assunção

a vida e a guerra são um só meio pelo qual a humanidade constrói a sua história... Não sabemos se Assunção está falando da guerra, de um momento anterior ou posterior a ela, ou se de nossas vidas. Mas talvez estes momentos não existam para ele. A vida é luta sangrenta, carnificina. E quem se distrai acorda com o supercílio rasgado. [ZACCA, 2013, p. 5]


E mais importante, o poeta não canta o que entende, não se trata de um caos que lhe dá prazer, mas de uma atmosfera que além de destrutiva, também não traz qualquer alento de entendimento. São tramas do real que não se dão aos olhos de seus sobreviventes, nem sequer aos poetas, em quem se depositou alguma fé em outro momento da história: “nada faz/ sentido nessa névoa de bosta, lama/ espessa subindo dos pés ao pescoço” [ASSUNÇÃO, 2012, p. 15]


*trecho do ensaio Desencanto e pulsão ética na Americalatina
** ponto de partida, Chacina never stops, resenha de Rafael Zacca: 
http://rascunho.gazetadopovo.com.br/chacina-never-stops/

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crédito do desenho no cabeçalho: dos meses duro, nanquim sobre papel, 2010 Philippe Bacana